22.1.07

 

As Múltiplas Falas do Português

Os temas relacionados com o uso da Língua Portuguesa continuam a atrair a minha atenção.

Recentemente, vim a saber que os actores portugueses convidados a participar nas telenovelas exclusivamente brasileiras, não nas luso-brasileiras, passam por uma espécie de ensaio de dicção, em que lhes é exigida maior clareza na pronunciação das palavras.

Até aqui não me parece mal, porque a preocupação com a percepção dos textos, por parte de quem vai produzir espectáculos para o público em geral, é naturalmente louvável. Mas já acho estranho que os actores lusos apareçam depois a falar com sotaque brasileiro, numa situação caricata para quem os conhece como sendo portugueses.

Admito que o façam de sua livre vontade, que até encontrem piada nesse exercício, que o encarem como mais uma tarefa de representação, na imensa variedade de papéis que um actor tem de assumir na sua versátil e incerta carreira.

Como princípio, no entanto, acho lamentável, porque não é natural neles, nem é saudável para a compreensão recíproca dos falantes da Língua Portuguesa.

Custa-me a crer que os Brasileiros não entendam o português europeu, pesem todos os defeitos de pronúncia que, de facto, aqui existem, alguns mesmo agravados pelo actual ensino da língua : deficiente, desleixado, excessivamente permissivo ao erro, à incorrecção, à falta de rigor, etc., etc., na Língua, como nas demais disciplinas.

Bastaria um pouco mais de atenção, de prática e de exigência, por parte dos Professores e do Ministério da Educação, para que este aspecto da deficiente articulação do Português europeu melhorasse com o tempo.

E, nos actores, de igual modo, com algum treino específico, boa orientação e maior cuidado na articulação das palavras, a clareza da fala ganharia imediatamente, com vantagem para todos os utentes da Língua que assim se compreenderiam melhor uns aos outros.

Segundo tenho ouvido a especialistas, o nosso modo de falar português perde sonoridade desde há muito, por particular fenómeno de evolução linguística, que aqui se desenvolveu, no sentido de uma mais rápida articulação, com a consequente perda de clareza na dicção. Falamos comendo letras e sílabas, quase só se ouvindo, em cada palavra, a chamada sílaba tónica, ficando as restantes, as átonas, quase imperceptíveis.

Ao contrário, no Brasil e em África, a fala é mais pausada, permitindo a quem ouve a percepção das diversas sílabas de cada palavra e não só a da sílaba tónica.

No Brasil, em particular, apesar das variantes de pronúncia entre Estados, distinguíveis mesmo para alguém pouco experimentado, de um modo geral, a Língua é falada com grande clareza, com perfeita distinção de sílabas, o que faz com que, para um estrangeiro que deseje aprender Português, se torne mais fácil a aprendizagem do idioma com cidadãos brasileiros do que com portugueses.

Já para o domínio das regras gramaticais, ouço dizer aos estrangeiros que preferem o contacto com a nossa norma, por ser mais regular, uniforme, concorde com os cânones da Língua.

A falta de contacto dos brasileiros com o português europeu, pelo fraco e desequilibrado intercâmbio cultural actual torna-os alheios à nossa singularidade. Isto a par de alguma falta de vontade, como é por de mais evidente.

Nunca as diferenças de sotaque e de pronunciação impediram as largas dezenas de milhares de brasileiros que vivem actualmente em Portugal de entender os portugueses. Essa dificuldade só se torna aparentemente inultrapassável, na posição inversa, isto é, quando os portugueses se encontram no Brasil. Coisa tanto mais estranha, quanto sabemos que durante décadas a fio muitos milhares de nossos compatriotas procuraram terras de Vera Cruz, como emigrantes, e por lá se radicaram, muitos para sempre, optando pela cidadania da nova Nação.

Consta que até aos anos 50 do século passado, as Companhias de Teatro portuguesas iam com frequência ao Brasil, eram bastante apreciadas e o sotaque português chegava a ser adoptado por actores brasileiros. Tudo isto hoje é passado, completamente esquecido. O Brasil perdeu o hábito de ouvir cantores e artistas de teatro ou de cinema portugueses e, com essa perda, veio a estranheza actual com que recebe a norma linguística europeia.

Estas coisas devem dizer-se, sem receio de desagradar, porque são reais e não visam o insulto, mas a discussão de ideias, para melhorar a nossa compreensão recíproca.

Sempre convivi com a cultura brasileira, desde a música, que comecei a ouvir ainda na pré-adolescência, com o Roberto Carlos, depois, nos bailes, a sua presença era habitual e ficaram-me dela nomes gratos como Elis Regina, Chico Buarque, este mais do que qualquer outro sempre me acompanhou pela vida fora. Na literatura, comecei, pela mão do meu Professor, tantas vezes aqui mencionado, José Pedro Machado, pelos clássicos, como José de Alencar, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Coelho Neto, Rui Barbosa, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo,Vinicius de Morais, Jorge Amado, etc.

No estudo da Língua, também me familiarizei com alguns vultos da Filologia do Brasil, desde os mais antigos mestres, como Mário Barreto, Ernesto Carneiro, Said Ali, José Sá Nunes, Antenor Nascentes, Serafim Neto, Silveira Bueno, Afrânio Peixoto, até aos hodiernos Napoleão Mendes de Almeida, Mattoso Câmara Jr., Celso Cunha, Evanildo Bechara, Domingos Cegalla, etc., a par de outros, cujos nomes de momento não consigo evocar, mas cujas obras jazem ali numas estantes mais recônditas, há longo tempo comigo.

Muitos destes nomes enobreceram a nossa cultura linguística comum, criando-nos um património que é nosso dever estimar e preservar. Mas, para isso, tem de haver conhecimento recíproco, que assenta na vontade de o tornar efectivo e não na busca de forçados motivos ou meras escusas erigidas como barreiras a um verdadeiro intercâmbio.

Aquilo que, sistematicamente, fazem no Brasil, com filmes e telenovelas portugueses, dobrados ou legendados para poderem circular, em nada ajuda a nossa desejável mútua compreensão.

A Língua Portuguesa pode conviver com variados sotaques e algumas especificidades. Mesmo aqui entre nós, temos diferenças de pronúncia muito acentuadas.

O falar de um minhoto contrasta com os de um transmontano, beirão, alentejano, algarvio, madeirense ou açoriano, para só citar os mais típicos, sem contar com os de um Cabo Verdiano, São Tomense, Guineense, Angolano, Moçambicano, Indiano, Timorense ou Macaense, estes últimos citados porque ainda nessas paragens, embora com dificuldade, consegue sobreviver o idioma de Camões, em lugares que ele próprio frequentou, na sua aventurosa quanto infeliz peregrinação por terras do Oriente.

Mas estas considerações não devem servir para desculpar as faltas, os erros e as incorrecções que todos praticamos no uso da nossa Língua comum. Alguns há, muito graves, porque corrompem a sua natureza. Refiro-me a um péssimo hábito de os brasileiros misturarem os tratamentos, violando arbitrariamente as regras da sintaxe, que nenhuma variante normativa da Língua pode consentir.

Frases como «Você já falou com o teu pai ? Não ? Então, vai falar, não seja rancoroso!», «Eu vi-lhe no cinema. Você estava conversando com tua prima, não nega!», etc., etc, nunca poderão ser tidas como normais no Português, nem em nenhuma língua de raiz latina.

Imagine-se como aquilo ficaria em Francês, Italiano ou Castelhano. Nem sequer em Alemão, que não é idioma do mesmo ramo, aquilo é possível. E, no entanto, é assim que praticamente todos os actores brasileiros falam nas telenovelas que passam na nossa TV.

Aqui não pode haver transigência da nossa parte, nem no Brasil deveriam aceitar tal prática. A Gramática não o permite. A Língua não comporta tamanhos aleijões.

Se viermos a acolher tais irregularidades estaremos caminhando para o caos linguístico, para o puro arbítrio, para uma coisa discricionariamente flexível, moldável, a caminho de uma rápida desarticulação, que redundará na realidade de uma nova língua, que já não poderá ser designada Portuguesa, mas porventura Brasileira.

Será isto que do outro lado do Atlântico se persegue ? Não creio que o seja, pelo menos por enquanto. Daqui por centenas de anos, admito-o com toda a naturalidade. Até lá, cabe-nos preservar a unidade da Língua, cultivando-a dentro das especificidades naturais, não disruptivas, se isto assim se pode dizer, que ela comporta nos diversos continentes onde logrou implantar-se.

Lamento que pouca gente, especialistas do idioma e de outros domínios correlatos, se interesse por estes temas. Raramente encontro nos jornais ou na blogosfera debates sobre estes assuntos.

Ultimamente, a TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário) tem animado um pouco a discussão sobre a aprendizagem do idioma. Nela se tem distinguido, pela constância, pela acutilância e pela consistência da argumentação, o nosso ilustre Deputado Europeu Vasco Graça Moura, intelectual de muitos méritos e larga obra publicada.

Que não lhe falte o fôlego interventivo, aqui também, porque a sua voz é bastante escutada e acrescenta saber ao tema em debate. Só é pena que a sua verve e a sua poderosa argumentação sejam tanta vez desperdiçadas e malbaratadas na defesa de gente menor, sem credibilidade, nem honorabilidade que justifiquem tanto empenho intelectual.

Mas, enfim, ele lá saberá porque há-de terçar tanta lançada, vã, a meu ver, claro, o que até lhe diminui a autoridade, ardua e dignamente conquistada noutros campos bem mais exigentes.

Mas isto já seria entrar em matéria mais política, a política algo degradada, a dos partidos, saindo daquela em que estávamos, mais cultural, terreno em que pelo menos se respira melhor, em que o ar não se acha tão fétido. Ficará para outra ocasião.

AV_Lisboa, 22 de Janeiro de 2007

Comments:
A língua portuguesa me dá um baita nojo, ainda bem que já está morta, só falta enterrar. Eu adoro mesmo é minha língua brasileira, linda e vivinha da silva.
 
Estou inteiramente de acordo consigo. É claro que uma língua pode ser usada de muitas formas. Nomeadamente de forma muito mal educada...

Um abraço de parabéns por este belo artigo.
 
Caro António Viriato

Estou de acordo contigo, mas penso que é tempo perdido tentar aproximar os falares de Portugal e do Brasil. Cada país deve seguir o seu caminho. Nós não precisamos deles. Eles não precisam de nós. Já são crescidinhos. Apesar da nossa proverbial falta de organização, até lhes deixámos um país que é baita grande, onde eles se podem mexer à vontade.

Aliás, a aparente falta de educação do comentário inicial, oriundo de um teu leitor brasileiro, não espelha mais do que a dificuldade que muitos dos brasileiros revelam em ler o português. Como se depreende, este leitor não conseguiu perceber o teu português, um tanto elaborado, convenhamos, e deve ter pensado que estavas a mandá-lo para a puta que o pariu. Quando não era o caso. Não obstante, até fui consultar o blog desse comentador e penso que ele tem toda a razão. No Brasil não se fala, sobretudo não se escreve português. E, como sabes, sou um defensor da adopção do inglês como segunda língua oficial do nosso país. Não do brasileiro.
Um abraço
Sokal
 
CAMÕES, AMÁLIA...
 
Estimado António,
escrevo-lhe na condição de brasileiro minimamente alfabetizado. Para mim (e, creio, para muitos como eu), o português europeu é o norte, o fundamento, a base. Seria um "hoch Deutsch", de onde vem a luz da consciência, da civilização. Na prática, porém, é inegável que no Brasil estão a se desenvolver outros falares, no mais das vezes marcados por dois componentes que atuam simultaneamente nesse desenvolvimento: a variedade de origem étnica da população (em parte saudosa de visões de mundo não-européias) e a emergência econômica (económica) dos tecnicamente iletrados. Antes de concluir, permita-me dizer que concordo inteiramente com o teor e o sentido de seu ("um tanto elaborado", vá lá) texto. Saudações.
 
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